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Esse é o terceiro conto compartilhado pela Susanne Rotermund, num grande gesto de generosidade, para aquecer o coração de vocês, nessa proposta das 21 “Histórias de coração para coração”.
Conhecemos Sara, a menina ingênua (AQUI) e Iossa e o violino mágico (AQUI).
Agora mergulharemos numa lenda de Steffen Hartmann chamada “A Ilha das Pedras”.
Aproveite!
A Ilha das Pedras
(Steffen Hartmann)
Era uma vez um pequeno reino numa ilha distante. Certo dia o rei dessa Ilha decidiu dar pessoalmente, a cada habitante do reino, um presente. Entregou a cada habitante, adulto ou criança, uma Pedra do Amor. As pedras eram feitas de puro amor. Elas tinham a particularidade de serem invisíveis, não terem peso físico e, no entanto, serem bem perceptíveis. Os habitantes perceberam logo que o melhor lugar para se guardar essas pedras de amor era dentro do coração. No coração elas aqueciam totalmente a pessoa e atuavam de tal maneira, que cada um passou a pensar e sentir o melhor sobre cada morador da Ilha.
Depois que o sábio rei da Ilha entregou a tal Pedra do Amor para cada um dos habitantes, ele faleceu. Na noite da morte do Rei, uma grande tristeza tomou conta da povoação daquela ilha em alto mar. Elas se sentiram solitárias e abandonadas.
No entanto, o dia seguinte despontou especialmente calmo na ilha, e havia um brilho surpreendente em cada pessoa. Eram as Pedras de Amor do Rei, que naquele momento começaram a brilhar como partes de uma grande obra, e em alguns casos, até começaram a soar. Outra peculiaridade dessas “pedras-presente” logo se fez perceptível – elas eram como puros espelhos: nelas se podia ver espelhada a própria alma. Também as almas de outras pessoas se espelhavam nas pedras, de forma pura e natural. Isso ocasionou uma nova e grande união entre as pessoas da ilha.
Ora, aconteceu que nessa ilha também havia um marinheiro extraordinário e descobridor, que quando era jovem havia viajado pela metade do mundo. Ele foi tomado então por uma grande saudade de partir para terra firme, e lá contar às pessoas sobre o Rei da Ilha, sobre sua morte e sobre suas pedras peculiares. Mas quem lá nas lonjuras, lhe daria crédito, já que ele estava sozinho?
Assim sendo, ele procurou quem o acompanhasse nessa viagem. Ele contou sobre terras estranhas e costumes enigmáticos que ele havia visto, despertando assim em alguns de seus amigos o desejo pelo desconhecido. Ele também descreveu vivamente como os poderosos desse mundo reagiriam às preciosas pedras do amor que cada morador da ilha trazia consigo. Não seria tentador coletar algumas dessas pedras e, conforme o interesse despertado, negociá-las por animais raros, plantas curativas e metais preciosos? A troca do presente do Rei por dinheiro e ouro incomodou bastante aos que queriam participar da viagem. Isso era correto? Isso não traria azar?
Prontamente este fato fez com que as pedras nos corações dos envolvidos se tornassem imperceptivelmente mais escuras e pesadas. Elas ainda brilhavam, mas um leve alvoroço surgiu nas pessoas, no sentido de lançarem-se logo na aventura e arriscarem-se ao negócio.
Assim que, em dia propício, doze pessoas partiram da ilha, lançando-se ao mar equipados de víveres e de bom humor, um velho adivinho que não tinha ido junto, descobriu em seu coração o dom de ver o futuro através de sua pedra. Muito assustado ele previu como os viajantes cairiam em uma tempestade, e também como, através do poder de suas pedras, conseguiriam acalmar os elementos da natureza, a tempestade daí para frente atuaria em suas almas e, em cada um, as dádivas das pedras aos poucos levariam a um sutil egoísmo. Um medo que as pedras pudessem ser roubadas tomou conta dos viajantes, principalmente em terra firme, a qual alcançaram totalmente esgotados depois de sete semanas. Este medo levava continuamente à vontade de ralhar, de brigar, de não mais se unir. E sempre quando um dos que portava a pedra se voltava contra outro que também portava a pedra, essas pedras se tornavam ao mesmo tempo mais escuras e pesadas, o mesmo acontecia com as que havia na ilha distante…
O velho Bardo guardou em sua alma todas essas visões do futuro, e calou-se. Mas elas o tornaram sério e ressequido. Enquanto isso, os outros habitantes da ilha passavam por um período feliz. Descobriram o dom curativo das pedras. Quando dois moradores da ilha, um doente e outro sadio praticavam uma boa ação em conjunto, como por exemplo, montar um canteiro de flores, ou preparar uma gostosa refeição para outros, milagrosamente o doente sarava. E quando duas ou três pessoas mantinham uma conversa profunda, e realmente escutavam umas às outras e faziam perguntas sinceras, percebiam curiosamente como todas eram nutridas e carregadas por suas pedras. De tal maneira que, alguns grupos, a partir daí, passaram a se alimentar mais através de suas conversas do que como anteriormente, através de comida e bebida.
Somente o velho percebia durante as noites que o seu coração doía, e ele percebia como o destino trágico dos doze viajantes também atuava sobre os habitantes da Ilha. Desde então aconteciam mais frequentemente pequenas brigas na ilha. Em si elas eram inofensivas, mas tinham efeitos estranhos: acontecia que quando um deles achava que sabia exatamente como seria o tempo no dia seguinte, e os outros não, ou quando um achava que a sua pedra tinha forças curativas especiais, essas discordâncias faziam com que todas as pedras ficassem mais fracas, e às vezes, não faziam efeito.
Na ilha vivia um jovem, que era um aluno aplicado do velho Bardo. Ele aprendera com o velho a tocar a lira, todas as canções antigas e suas melodias. O Bardo nunca falava sobre suas histórias desastrosas do futuro, no entanto, o rapaz sabia do porquê. Ele sabia ler as pedras em todos os corações, de forma especialmente pura e clara. Ele também acompanhava o destino dos 12 viajantes, que neste ínterim haviam brigado entre si e se separado. Ele sabia que um Rei Negro já havia capturado 7 pedras, e que este pensava dia e noite sobre como conseguir as outras 5. O rapaz sabia que isso não poderia acontecer.
O que deveria acontecer para que o Rei Negro não alcançasse seu objetivo ficando com todas as 12 pedras em seu poder? O rapaz refletiu sobre isto várias noites. O Bardo percebeu através do canto dele o quanto a seriedade da existência havia penetrado em sua vida, e também pôde ver as forças de sacrifício muito especiais que eram exigidas da pedra dele. Mas ele ainda precisava de uma terceira alma, que acordasse, para que os acontecimentos na ilha pudessem ser discutidos…
Desde a morte do rei, sua filha – uma jovem pura – vivia muito recolhida no castelo. Ela conversava com seu pai através de seu coração e raramente se misturava com as pessoas. Certo dia, quando caminhava pelas ruas em trajes simples, escutou por uma janela aberta o canto suave do rapaz. Ela nunca havia escutado algo assim. Soava como o murmúrio do mar, o canto dos pássaros, a risada das crianças pequenas, e mesmo assim, ainda havia algo a mais – a pedra do amor dele cantava junto, soava de forma muito viva, como se partisse de várias gargantas ao mesmo tempo. Isso despertou nela um profundo amor por esse rapaz cantor.
Na noite seguinte, ela então viu que esse rapaz corria grande perigo. Um Rei Negro com 11 cães terríveis caçava o rapaz por uma floresta escura. Por um triz ele conseguiu entrar no oco de uma árvore, totalmente sem fôlego, e o rei negro, com suas 11 bestas, passou voando e sumiu dentro da noite cinzenta. Protegido pela árvore, o rapaz estava totalmente desesperado. Ele sabia que se o Rei Negro capturasse mais uma pedra, ele então teria todas as 12 em mãos. Então surgiria a décima segunda besta, e também a ilha estaria perdida. Pois elas surgiriam e ficariam com tudo e os moradores da Ilha ficariam desprotegidos como crianças adormecidas.
A Filha do Rei então sentiu uma dor muito profunda ao ver o rapaz tão desesperado, e chamou-o dizendo que queria ajudá-lo… mas nesse instante ela acordou. Nesta mesma noite o velho Bardo adoeceu severamente, e o rapaz precisou cuidar dele a partir de então. A filha do rei então mandou procurar o rapaz, mas as suas servas não o encontraram. O rapaz usou de todas as suas artes curativas para salvar o amado mestre da morte. De noite lutava contra os demônios e de dia cuidava do Velho. Este se calava. Assim se passaram 40 dias. Certa manhã o Bardo disse: “a filha do rei está à sua procura. Ela tem um coração puro, e te ama profundamente.” O rapaz muito se surpreendeu, e disse: “eu não a conheço; como pode ela me amar?” “Ela escutou seu canto e reconheceu a sua alma. Vá até o castelo, pergunte-a sobre a velha lira do falecido Rei, voltem os dois até mim o mais rápido possível, pois eu quero lhes cantar uma música antiga, desconhecida.”
O rapaz saiu bem depressa. Porém em toda a ilha já havia brigas e caos. As pessoas não mais se entendiam direito entre si. O que uma pedra dizia no coração, não combinava mais com aquilo que outra dizia. Era como se todas falassem línguas diferentes entre si. E os dons das pedras desvaneciam e murchavam, assim como rosas que um dia foram maravilhosas, mas cuja decomposição agora não podia mais ser estancada.
O caminho até o castelo era longo, e o rapaz tinha que parar várias vezes para se orientar e não errar o caminho. Quando enfim chegou no castelo, viu pela primeira vez a filha do rei, seu cabelo escuro e longo, os olhos luminosos, suas mãos delicadas. Ele perdeu a fala, e assim eles apenas se olharam por um longo tempo. Com isto passou-se um tempo precioso, pois o velho bardo estava morrendo. Calada, a filha do Rei conduziu o rapaz pelos seus aposentos, ele então viu a antiga lira dourada do Rei encostada na parede. Imediatamente ele se lembrou que tinham que ir imediatamente até o velho doente, que estava morrendo. Ele disse: “querida criança das estrelas, venha comigo com a lira dourada de seu pai, até o meu professor que está morrendo. Ele quer nos cantar uma canção que nós precisaremos na luta contra o Rei Negro com as 11 bestas.”
Imediatamente ela pegou o precioso instrumento, embrulhou-o num pano, e juntos saíram do castelo. Enquanto isso a noite havia chegado: soprava um vento gélido sobre a ilha. As duas crianças mal conseguiam seguir adiante. Ao mesmo tempo o Bardo percebeu que seu tempo havia terminado, no entanto ele estava completamente só. Onde estava o rapaz, onde estava a filha do rei?
Naquele mesmo instante – a milhões de quilômetros de distância – o Rei Negro, com as suas 11 bestas, havia aprisionado o marinheiro que certo dia havia partido da Ilha com os outros 11 moradores. O marinheiro havia ficado velho e grisalho. Há muito tempo ele havia percebido os erros que cometera e estava muito arrependido. A pedra em seu coração não havia esfriado totalmente; no entanto como ele poderia resguardá-la do Rei Negro, em cujo poder ele havia caído? Certo de seu negócio, o Rei Negro disse: “se você me der voluntariamente a pedra do seu coração, eu te darei a vida. Bem, você poderá ser o cuidador dos meus cães. “Nunca, jamais!” disse o velho marinheiro “minha pedra você não terá.” O Rei acenou irritado para uma de suas bestas. Esta mostrou seus dentes e o fedor de sua fuça sufocou a respiração do marinheiro. Ele parecia desmaiar.
Nesse momento a vida do velho bardo expirou, sem ele ter tocado a canção na lira dourada; pois neste mesmo instante, a filha do rei e o rapaz tinham se desviado do caminho e caído dentro de um buraco, e a lira caiu na lama. No momento da morte a pedra do amor brilhou no coração do Bardo e uma luz revigorante projetou-se sobre o rapaz, a filha do rei, e também sobre o ameaçado marinheiro, de tal maneira que o assustado Rei Negro ficou ofuscado por um momento.
Do âmbito espiritual ressoava a voz de um ser sublime: “esses três agora deverão resistir com a sua ajuda”. Era o falecido rei da ilha que, de distantes esferas solares, participava de tudo o que acontecia. Grande inquietude tomou conta das 11 bestas. Elas começaram a se atacar mutuamente. O Rei Negro chamou-as à ordem, mas nesse instante, elas não mais o obedeciam.
No mesmo instante o rapaz tirou a lira dourada do barro e, por acaso, tocou nas cordas. Neste momento, ele e a filha do Rei souberam que o Bardo havia morrido. Mas aconteceu o milagre que o rapaz, na voz do Bardo, cantou e tocou a velha canção, que nunca se fizera ouvir. Era como se o velho Bardo tocasse e cantasse através dele. A filha do rei acolheu essa canção profundamente em seu coração.
Ao mesmo tempo o marinheiro, em meio ao perigo, ouviu essa canção, sua coragem retornou e a pedra em seu coração ganhou vida. O próprio Rei Negro, que estava à sua frente de adaga erguida, ficou mudo. O marinheiro então cantou conforme lhe mandava o coração, com a voz rouca e destreinada. As bestas acompanharam uivando horrivelmente, o Rei Negro se irritou profundamente, no entanto ele estava impotente.
Afinal o marinheiro escapou da ameaça do Rei Negro; ele foi levado nas asas do Canto e a alma do falecido velho o conduziu de volta à sua Pátria, na ilha, para o buraco com barro, junto ao rapaz que estava cantando com a lira dourada e a filha do rei.
Do que tratava a canção nunca ouvida? No fundo não era nem velha nem nova. Ela vinha do “não-nascido”. Ela só poderá ser ouvida por seres humanos cuja vontade de sacrifício é tão grande, que eles conseguem se apartar daquilo que se tornou, daquilo que existe. Para aqueles que ainda estão ancorados na solidez, na riqueza desse mundo, essa canção é incompreensível, certamente quase inaudível.
Assim cantava o jovem, com a Lira Dourada que havia caído no barro, ao lado da filha do rei que tremia de emoção, e do velho marinheiro que havia sido enviado pelo falecido Bardo. Quanto ao Rei da Ilha originária de remotas distâncias solares, o rapaz cantou sobre a transformação do Mal.
Este é o segredo do Mal, que ele quer ser transformado. O Pai Divino permeia tudo, até o Rei Negro e as 11 bestas. E era disto que falava o canto do rapaz: que tudo pode ser renovado. No caminhar do mundo nada precisa ficar para trás. Sua melodia passava por 11 tons, que ao tecer transformava esses 11 tons em um vibrante tapete sonoro.
E naquela noite ficou claro, nesta ilha no imenso mar, que nada é mais forte do que o amor, que compreende. O Mal não consegue inferir o destino do mundo. O Mal não leva a harmonia alguma. Por isso, a harmonia dos corações consegue superar o Mal e transformá-lo.
Susanne Rotermund, artista. Autora do livro A África em nós – a cultura dogon, cadernos pindorâmicos 2, Editora Barany (veja AQUI)
Querida Ana as vezes fico em dúvida se conto ou não a história, sem saber se é apropriada para a idade da criança. Seria ótimo se puder informar a faixa de idade sugerida para a história. Que tal?! e muito obrigada por semear belas histórias!
Que história lindíssima! Gosto de histórias que fazem a gente refletir sobre a dualidade natural da vida e o que elas representam em nós! Agradeço mais uma vez por compartilhar.