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Classificado como conto jocoso, essa história integra a obra Contos e Lendas da Terra do Sol, de autoria de Marco Haurelio e Wilson Marques, que reúne contos recolhidos na Bahia e no Maranhão.
Me encanta a riqueza e vastidão das narrativas da tradição oral, e tenho apreço por esse conto, em razão do mesmo, juntamente com outros da mesma obra, ter feito parte do espetáculo performático Histórias da Terra do Sol, em homenagem à linda cultura e paisagem do nosso bendito sertão. Esse espetáculo marcou o encerramento da disciplina: Formação de Contadores de Histórias: Conta Comigo!, com a Professora Luciene Souza Santos, na UESC. Foi uma experiencia maravilhosa, de encontro e aprendizado.
Bom, tem dias que precisamos, mesmo, ir buscar o sol. Outros, em que podemos sossegar, e esperar o sol chegar. Podemos caminhar muito, e descobrir que precisamos regressar pra onde deixamos nosso coração.
O povo que buscava o sol
Certa vez um rapaz bem apessoado e trabalhador que atendia pelo nome de João, encantou-se por uma moça muito linda chamada Maria do Céu.
Conversa vai, conversa vem, João pediu Céu para namorar, o que ela aceitou prontamente, colocando, entretanto, uma condição.
– Você pode me visitar todos os dias da semana em minha casa, exceto às quintas-feiras.
Tal exigência não deixou de soar estranha aos ouvidos do rapaz, mas tão apaixonado ele estava que a princípio nem ligou. E assim começaram a se encontrar.
Com o tempo, no entanto, João ficou por demais curioso com aquele porém, terminando por quebrar sua jura. Numa quinta-feira, decidiu fazer uma visita à namorada, que morava a uma légua de distância.
Lá chegando, bateu na porta e, como demorassem a abrir, o rapaz colou os ouvidos na madeira. Então ouviu um alvoroço lá dentro, reconhecendo a voz dos pais de Céu discutindo.
– E agora, o que vamos fazer? – perguntava a mãe da menina.
– Vamos fingir que não tem ninguém em casa – disse o pai.
– Tarde demais. A essa altura ele já ouviu nosso falatório e você sabe como são os jovens, não desistem nunca. Ponha seus sapatos, seu relógio, seu cinto, fique bem bonito e vá atender o rapaz – disse a mãe.
– Nem pensar. Ponha você suas joias, faça um penteado bem bonito e vá.
Ninguém dentro de casa chegava a um acordo. Mas tanto o rapaz insistiu que os pais da moça foram atendê-lo, e o que João presenciou quase o fez desmaiar de susto. Ambos estavam completamente nus. Muito sem jeito, explicaram ao visitante o porquê de encontrá-los naquela vexatória situação.
– É que nas quintas-feiras, João, nós lavamos nossas roupas, de modo que, enquanto isso, ficamos assim, sem nada pra vestir, trancados dentro de casa.
O rapaz ficou tão embasbacado, que nem quis mais falar com Céu. Despediu-se dizendo que voltava no dia seguinte, mas no seu íntimo já havia tomado uma decisão: não queria mais casar com alguém de uma família de gente tão lesada.
De qualquer maneira, como estava sinceramente apaixonado pela menina, pensou, pensou, e resolveu que viajaria pelo mundo. Caso encontrasse pessoas mais idiotas que aquelas, voltaria para casar com sua Maria.
Assim, João se despediu da família e, guardando segredo dos reais motivos da viagem, montou em sua burra e ganhou a estrada.
Um dia, já bem distante de casa, João deu com um homem trepado numa árvore serrando um dos seus galhos mais altos, porém acomodado justo na parte que iria se partir.
– Cuidado, meu senhor, desse jeito o senhor cai! – João gritou, tentando evitar o desastre. Tarde demais! O galho rompeu, e o sujeito estatelou-se no chão, por sorte não morrendo ali mesmo.
Confuso e sentindo dor em tudo que era parte do corpo, o homem levantou, agradeceu e, encarando admirado o viajante, disse:
– O senhor soube que eu ia cair. Então o senhor é um adivinho!
Para não contrariar, João não desmentiu, e continuou seu caminho. Mas o homem o seguiu. Repetindo aos brados que o rapaz era um adivinho, implorava que João revelasse o dia da sua morte.
João então pensou e pensou. Para se livrar do chato, profetizou o seguinte:
– Quando minha jumentinha defecar três vezes, o senhor morre.
O homem ficou apavorado. Seu destino estava escrito. O que fazer? Como já estava mesmo com os dias contados, decidiu abandonar tudo e saiu seguindo João e a burrinha, chorando e torcendo para que, pelo menos, a coitada sentisse prisão de ventre e assim ele pudesse prolongar um pouquinho mais seus dias na terra. Mas, naquele mesmo dia, a burra fez o seu primeiro cocô, e o homem passou mal. No segundo dia, a segunda barrigada, e o homem sentiu febre. No terceiro dia, quando já iam bem longe do povoado, veio o terceiro cocô, e o homem caiu duro no chão, gritando:
– Eu morri, eu morri!
Coincidiu que naquele instante um grupo que vinha pela estrada em sentido contrário, a caminho do vilarejo viu a confusão e se aproximou. Ao verem o homem no chão, reconheceram ser um morador de todos conhecido e, dizendo não acreditarem no que tinha acontecido, começaram a lamentar a perda.
– Coitado. O que vai ser dos filhos? diziam uns.
– E da mulher? Vai morrer também de tanta tristeza, diziam outros.
– De que terá ele se finado? alguém perguntou.
– Magrinho como está, deve ter sido de fome, outro respondeu.
Como o povoado era longe e o cemitério, bem mais perto, decidiram aproveitar a viagem para enterrar logo o vizinho. Puseram-no numa rede e seguiram pela estrada, chorando e rezando, enquanto João de queixo caído, seguia o cortejo pensando em quanto aquela gente era estúpida.
Antes de alcançar o campo santo, o grupo chegou às margens de um rio, onde só era possível atravessar de barco. Mas não havia nenhuma embarcação ali. Preocupados, baixaram a carga fúnebre no chão e perguntaram.
– E agora, como vamos fazer para chegar no cemitério que fica do outro lado?
Foi quando o morto botou a cabeça para fora da rede e disse:
– Quando eu era vivo, tinha uma ponte bem ali, mas, agora que eu estou morto, podem me largar aqui mesmo, dentro da água.
Então, jogaram o dito cujo na água, onde ele morreu afogado.
João seguiu seu caminho sem saber o que pensar daquele episódio. Andou, andou, e chegou a um povoado, onde logo fez amizade com os moradores.
Simpáticos e hospitaleiros como ele nunca tinha visto. Para agradar a todos, tomou banho na casa de um, jantou na casa de outro, dormiu na casa de um terceiro. Ao acordar de manhã, surpreendeu-se por não encontrar ninguém. Nem na sua casa nem pelas ruas.
De repente viu um tropel se aproximando. Eram os moradores, que chegavam à medida que o sol se erguia no horizonte.
– Estavam fazendo o que tão cedo? João perguntou, intrigado.
– Ora, fomos buscar o sol. Responderam.
– Como assim, buscar o sol?
– Porque se a gente não for buscar o sol, o dia não amanhece, ora essa.
João achou graça da estupidez, mas não pôde deixar de dizer:
– Gente, vocês não precisam ter essa trabalheira de ir todo dia buscar o sol. Ele vem sozinho.
Para a surpresa de João ninguém acreditou. Pelo contrário, acharam que ele era um bocado burro por dizer um coisa daquelas. Mas tanto o jovem insistiu que os aldeões, depois de muito duvidar, admitiram no dia seguinte, fazer a experiência de ficar em casa, aguardando o sol raiar por si só.
Quando então o sol apareceu sem que ninguém precisasse se levantar no escuro para ir buscá-lo, todos ficaram tão felizes que promoveram um da inteiro de festa, música, dança e comilança para comemorar a descoberta. Por fim, como prova de reconhecimento, presentearam João com uma carroça, à qual o rapaz atrelou a burrinha. E lá se foi João pelas estradas, pensando em como existem pessoas bobas nesse mundo de Deus.
Lá adiante chegou em uma casa belíssima, cercada de muros e jardins. Um palacete, na verdade, onde João parou para pedir um pouco de água e comida. Como sempre, o rapaz foi muito bem recebido. A dona da casa era uma mulher ainda jovem e bonita. E, embora aparentasse um ar triste, mandou que entrasse e se acomodasse confortavelmente num sofá da sala, cheia de tapetes caros, almofadas, móveis e quadros na parede.
Então, naquele instante, lembrando-se com saudade da namorada, disse João para si mesmo, baixinho:
– Ai, ai, que saudades de Céu!!
Escutando isso, a mulher voltou-se para o rapaz perguntando, abismada:
– Você veio do céu?
Pego de surpresa com aquela pergunta sem pé nem cabeça, João levou um susto. Mas, depois de tantas maluquices que vira em sua viagem, já não se assustava mais com nada.
Para não contrariar a dona da casa, João balançou a cabeça afirmativamente.
– E quando você volta pra lá? – a mulher quis saber.
– Amanhã – disse João.
– Então você pode fazer um favor pra mim?
– Com todo o prazer.
– É que meu esposo, coitado, foi pro céu só com a roupa do corpo. E já que você vai pra lá, pode levar umas roupinhas pra ele? O pobre deve estar precisando.
João riu por dentro de tanta estupidez. E mais uma vez, para não contrariar a boba, mas simpática mulher, disse:
– Pode ficar despreocupada. Eu levo as roupas do seu marido.
A dona de casa foi logo pegar as roupas que eram muitas e caras. Como, desde que o esposo partira, andasse muito desgostosa e sem ânimo sequer para usar mesmo seus mais belos vestidos, resolveu entregar tudo para João, para que ele desse às suas primas que, segundo dissera o rapaz, tinham também ido para o céu praticamente peladas.
Em dois tempos João encheu sua carroça e partiu.
Depois de se deparar com tanta gente idiota, decidiu que tinha chegado a hora de voltar pra casa e ir ao encontro da sua adorada Céu que, afinal de contas, não era tão boba assim.
Recebido com muita alegria, presenteou a todos com as roupas, as jóias e os sapatos que trouxera da sua viagem. Finalmente, entendendo que mais bobo havia sido ele em deixar a amada sozinha, pediu a mão de Céu, com ela se casando numa festa que durou três dias e três noites.
Contado por Maria do Rosário Alves Serra
São Luís, Maranhão
Josilene Costa – professora, atriz e apaixonada por contos.
Muito boa para esses dias em que estamos vivendo. Valorizar o que temos hoje e ser gratos.
Sim, Aparecida, essa história é muito apropriada para o momento atual e tantos outros que viveremos. Abraços
Muito boa. Agradecer e cuidar de tudo que temos