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A história que toca o meu coração se chama “Uma fábula sobre a fábula”. Trata-se de um conto árabe sobre um personagem feminino, a Verdade, que, desejando falar ao sultão, foi impedida de entrar em seu castelo por ser demasiado perigosa a todos que ali se encontravam.
De fato, estar de frente com a Verdade, assim como estar de frente com uma mulher de posse de sua Verdade, é uma possibilidade perigosa e até desconhecida para muitos.
A Verdade não desistiu: fantasiou-se de acusação e, por fim, de fábula.
Sabemos que as crianças costumam adentrar ao “mundo real” pelas fendas da imaginação. Assim, a fantasia costuma ser uma imagem com a qual a criança dá a mão para compreender os meandros do mundo social. Mas é pouco comum imaginar que aos adultos – alguns adultos mais que outros – a fantasia também se faça necessária. Se o real ou o verdadeiro se apresentar totalmente acessível, será recusado; se estiver sob o amparo de diferentes padrões ou de desagradáveis formas sociais, será rejeitado; contudo, se estiver sob uma fantasia, será então, bem-vindo, podendo até dispensar comprovações a respeito de sua palavra.
Sob o ponto de vista moral, que costuma estar sempre presente nas fábulas, a personagem feminina é teimosa e persistente, enquanto as personagens masculinas são de frágil caráter, bem como ingênuos. Mas, me toca em especial a ideia de que a Verdade, mesmo impedida ou disfarçada, sempre terá a sua vez de ser uma presença na caminhada humana.
Uma fábula sobre a fábula
(Malba Tahan)
Allah Hu Akbar! Allah Hu Akbar!
Deus criou a mulher e junto com ela criou a fantasia. Foi assim que uma vez a Verdade desejou conhecer um palácio por dentro e escolheu o mais suntuoso de todos, onde vivia o grande sultão Haroun Al-Raschid. Vestiu seu corpo apenas com um véu transparente e pouco depois chegou à porta do magnífico palácio. Assim que o guarda apareceu e viu aquela mulher sem nenhuma roupa, ficou desconcertado e perguntou quem ela era. E a Verdade respondeu com firmeza:
– Eu sou a Verdade e desejo encontrar-me com seu senhor, o sultão Haroun Al-Raschid.
O guarda entrou e foi falar com o grão-vizir. Inclinando-se diante dele, disse:
– Senhor, lá fora está uma mulher pedindo para falar como nosso sultão, mas ela só traz um véu completamente transparente cobrindo seu corpo.
– Quem é essa mulher? – perguntou o grão-vizir com viva curiosidade.
– Ela disse que se chama Verdade, senhor – respondeu o guarda.
O grão-vizir arregalou os olhos e quase gaguejou:
– O quê? A Verdade em nosso palácio? De jeito nenhum, isso eu não posso permitir. Imagine o que ia ser de mim e de todos aqui se a Verdade aparecesse diante de nós? Estaríamos todos perdidos, sem exceção. Pode mandar essa mulher embora, imediatamente.
O guarda voltou e transmitiu à Verdade a resposta do seu superior. A Verdade teve que ir embora, muito triste.
Acontece que…
Deus criou a mulher e junto com ela criou a teimosia. A Verdade não se deu por vencida e foi procurar roupas para vestir. Cobriu-se dos pés à cabeça com peles grosseiras, deixando apenas o rosto de fora e foi direto, é claro, para o palácio do sultão Haroun Al-Raschid.
Quando o chefe da guarda abriu a porta e encontrou aquela mulher tão horrivelmente vestida, perguntou seu nome e o que ela queria.
Com voz severa ela respondeu:
– Sou a Acusação e exijo uma audiência com o grande senhor desse palácio.
Lá se foi o guarda falar com o grão-vizir e, ajoelhando-se diante dele, disse:
– Senhor, uma estranha mulher envolvida em vestes malcheirosas deseja falar com nosso sultão.
– Como ela se chama? – perguntou o grão-vizir.
– O nome dela é Acusação, Excelência.
O grão-vizir começou a tremer, morto de medo:
– Nem pensar. Já imaginou o que seria de mim, de todos aqui, se a Acusação entrasse nesse palácio? Estaríamos todos perdidos, sem exceção. Mande essa mulher embora imediatamente.
Outra vez a Verdade virou as costas e se foi tristemente pelo caminho. Ainda dessa vez ela não se deu por vencida.
E isso porque…
Deus criou a mulher e junto com ela criou o capricho.
A Verdade buscou pelo mundo as vestes mais lindas que pôde encontrar: veludos e brocados, bordados com fios de todas as cores do arco-íris. Enfeitou-se com magníficos colares de pedras preciosas, aneis, brincos e pulseiras do mais fino ouro e perfumou-se com essência de rosas. Cobriu o rosto com um véu bordado de fios de seda dourados e prateados e voltou, é claro, ao palácio do sultão Haroun Al-Raschid.
Quando o chefe da guarda viu aquela mulher deslumbrante como a Lua, perguntou quem ela era.
E ela respondeu, com voz doce e melodiosa:
– Eu sou a Fábula e gostaria muito de encontrar-me, se possível, com o sultão deste palácio.
O chefe da guarda foi correndo falar com o grão-vizir, até esqueceu-se de ajoelhar-se diante dele e foi logo dizendo:
– Senhor, está lá fora uma mulher tão linda, mas tão linda, que mais parece uma rainha. Ela deseja falar com nosso sultão.
Os olhos do grão-vizir brilharam:
– Como é que ela se chama?
– Se entendi bem, senhor, o nome dela é Fábula.
– O quê? – disse o grão-vizir completamente encantado – A Fábula quer entrar em nosso palácio? Mas que grande notícia! Para que ela seja recebida como merece, ordeno que cem escravas a esperem com presentes magníficos, flores perfumadas, danças e músicas festivas.
As portas do grande palácio de Bagdá se abriram graciosamente e por elas finalmente a bela andarilha foi convidada a passar.
Foi desse modo que a Verdade, vestida de Fábula, conseguiu conhecer um grande palácio e encontrar com Haroun Al-Raschid, o mais fabuloso sultão de todos os tempos.
Fonte: Malba Tahan, Minha vida querida
Me chamo Aline de Caldas e gosto de me apresentar como aprendiz e professora, viajante e contadora de histórias, que curte filmes e danças circulares a valer. Eu diria que as histórias também me fizeram amar os encontros, as histórias “reais” das pessoas, aquelas histórias que a gente ganha depois de contar uma história fabulosa…
Gosto dessa historia e bem mostra a persistência da mulher diante de algo que ela deseje. Imaginação e argumentos não foram poupados. Por outro lado a conduta e os receios do vizir já deixam o perfil dele bem delineado.
Essa história é muito forte! Também gosto muito dela e já a contei bastante por aí. Abraços