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Sobre Histórias e Contos*

 

Afortunadas as crianças que ouvem histórias! Acalentadas pela voz do narrador,
rejubiladas pela maravilha das imagens, deixam-se guiar pela luz
das verdades essenciais que ali se escondem.
(PAMPLONA, 2018).

 

Ana Flávia Basso, autora deste site, “Educar com Histórias”, pediu-me para falar de alguma história que tenha tocado meu coração ou que tivera marcado a minha vida. Em verdade, falarei não da história, mas do que ocorrera, por conta de histórias e de uma história.

Essa história, em particular, trata-se de um pequeno conto intitulado  “A Serpente de Ouro”.

A história “A Serpente de Ouro” não apenas revela uma grande mensagem, mas também nos comove pela sua beleza. Essa história foi decisiva para que eu continuasse a contar histórias nas minhas aulas de estatística na Universidade.

Comecei a contar histórias, em sala de aula, por volta do ano de 2017. O que me levou a fazer isso? Eu tive as primeiras vivências com contações de histórias na minha infância, através de pessoas mais velhas. Essas vivências comportavam diversas manifestações: noites de rodas e cantigas pelo sertão da Bahia e outras. Eram noites sem energia elétrica. Ocupávamos as ruas dos pequenos lugarejos e também do lugar onde nasci. Contudo, as histórias ouvidas, principalmente de meu pai, foram marcantes. Pena que com a chegada da energia, da televisão e também da fase de adolescência, tudo isso foi desaparecendo, isso por volta de 1975.

Depois de muito tempo, me reencontro com as contações de histórias, isto já em 2013. Alguém poderia perguntar-me, mas antes desse período você não teve mais contato com as histórias infantis, como, por exemplo, chapeuzinho vermelho, os três porquinhos, branca de neve etc?

Sim, tive contato! Entretanto, desde que meu primeiro filho nasceu, uma menina, em 2002 eu passei a ler exatamente essas histórias para ela, pela noite. Porém, elas não me empolgavam. Eram histórias com mais imagens do que texto. As histórias não eram completas. Fora isso, na maioria desses livrinhos as imagens ocupavam grande espaço, ficando os textos escritos, por sua vez, ocupando uma parte muito pequena da história.

Desse modo, pergunto: por que que eu considero só a partir de 2013? Porque  foi justamente em 2013 que meus filhos, um com 6 anos e outro com 11 anos, iniciaram os estudos em uma Escola que a professora recomendava, para os pais, o ato de contação de histórias.

Os autores e os livros indicados por eles eram mais completos e mais próximos das narrativas originais. Histórias centenárias ou até milenares, principalmente as que constavam nos livros de autores como os dos irmãos Jacob  e Wilhelm Grimm, Hans Christian Andersen e Charles Perrault etc. Logo mais tarde, eu tive a oportunidade de conhecer uma contadora de histórias. Uma verdadeira contadora! Ela veio ministrar cursos na universidade que eu sou professor. Um curso com temática voltada para a contação de histórias infantis, visando professores da educação infantil e fundamental, isso por volta de 2016. Ela ficou hospedada em Serra Grande, em minha casa.

No dia de sua chegada em Serra Grande era o aniversário de um amigo. Logo, a levamos conosco. Chegando lá, ela contou uma linda história! Todos os convidados e o aniversariante (meu amigo Rui Rocha) ficaram muito atentos e extasiados. Pelo menos, confesso, eu fiquei. Ainda não tinha ouvido de alguém uma história contada daquela maneira. Uma história com tanto encantamento e tantas imagens, simbologias e significados. Para mim, foi marcante! Queria fazer exatamente aquilo que aquela mulher estava fazendo! Queria ser também um contador de histórias. Fiquei pensando comigo.

Mas, além disso, tive outros vários encontros com a contação de histórias. Na Escola de meus filhos, presente em sala de aula, e também no convívio com uma das maiores escritoras do Brasil nessa literatura: a professora Rosane Pamplona. Além de escritora da literatura infantil, ela também era professora de redação e língua portuguesa, uma pesquisadora da língua portuguesa. Em duas ocasiões, tive a oportunidade de participar de suas aulas, uma na classe de minha filha, no nono ano e a outra no programa Universidade para todos (UPT) do Governo Estadual da Bahia, aulas memoráveis.

Com tudo isso, a graça foi ainda maior: essa contadora tornara-se uma amiga da família. Muito querida por todos! A família foi presenteada com vários de seus livros e também com vários de seus belos contos. Em um evento para a comunidade de Serra Grande, com a presença de um público considerável, tivemos a grata satisfação de sermos, inclusive, presenteados com contos infantis da África.

Todo esse ambiente e contexto, convenceu-me da importância de levar isso também para as minhas aulas na Universidade. Uma contação de história pode durar em torno de 10 minutos, daquelas que eu gosto de contar.

O ouvir histórias em sala de aula contribui pedagogicamente, sem falar dos outros aspectos envolvidos, para um momento ou como uma ferramenta importante para a realização do exercício da respiração, ou oxigenação cerebral. Esses processos são fundamentais para o processo de ensino e aprendizagem.  Há quem diga que 25% do aprendizado depende de uma boa oxigenação cerebral.

Bem, retornando ao nosso assunto principal, a contação de história e o momento em que essa me marcou, quero dizer do quanto essas etapas foram decisivas para a continuação do processo. Nos primeiros dias de aula, normalmente, eu inicio contando histórias. Não faço isso em todas as aulas. Bem que eu gostaria de fazê-lo. Antes, não havia tantas histórias contadas assim. Comecei essa prática exatamente no ano de 2017. Mas, na verdade, eu as conto quando sinto que há um ambiente para isso e no momento adequado.

Neste caso, era uma tarde de um dia normal de aula, primeiro semestre de 2018, disciplina de probabilidade e estatística para alunos dos cursos de Engenharia. Nessa turma, havia apenas homens, nenhuma mulher. Uma turma agitada, alto nível de atividade neurológica, jovens de uma faixa etária entre 18 e 19 anos. Senti logo, no início da aula, uma certa inquietação. Eu tinha a impressão de que eles só pensavam e só falavam em cálculos, com aquelas megas calculadoras. Então, veio-me a seguinte decisão: contar uma história, um conto daqueles bem bacana, para mim, eu pensei. Logo, veio-me também o julgamento na minha própria cabeça: “acho que eles vão achar ridículo, em plena aula de probabilidade e estatística, o professor contar uma história”. Mas, resolvi contar assim mesmo.

Eles, então, foram ficando silenciosos e acalmando-se. Percebi uma certa atenção! Todos ficaram voltados para mim. Foi quando eu percebi que a atenção deles estava voltada para a história. Um silêncio por completo! Foi chegando o final da história e eu imaginando qual seria a reação deles. Seria de descaso? Seria de indiferença ou de reprovação? Chegou o final da história, e agora, a minha ínfima expectativa foi quebrada, estraçalhada com a vibração igualada a da conversão de um pênalti em um gol num jogo de final de campeonato de futebol (guardando as devidas proporções), soco no ar, sacudida na cadeira etc.

Na verdade, foi eu que fiquei perplexo, por um momento. Esperei eles se acalmarem novamente e, a partir daquele momento, percebi que tive uma das melhores aulas de interação com a turma. Assim, procurei proceder até o final do semestre.

Pergunto: Por que imaginar que as pessoas não gostam de ouvir histórias? Mais ainda, por que jovens, mesmo adolescentes, não gostam de histórias?

Na verdade todos nós gostamos, talvez quem diz não gostar é porque ainda não teve a oportunidade de ouviu uma boa história ou uma história bem contada. Na verdade, provavelmente, entre aqueles jovens naquela tarde de aula na universidade, para muitos, certamente, foi a primeira vez em suas vidas. Isso pode ter mexido com eles, então?!

A Seguir apresento o texto dessa história, “A Serpente de Ouro” tirada do livro Novas Histórias Antigas da autora Pamplona (2018). Segundo esta autora, essa história foi registrada pela primeira vez no século XII, por Petrus Alphonsi, na sua Disciplina clericalis. Rosane Pamplona esclarece que em seu livro, ela apenas trabalhou a linguagem dessa história, o enredo é o mesmo.

Agradeço, desde já, a autorização da Rosane Pamplona por transcrever aqui essa história.

 

A Serpente de Ouro

 

Certa vez, um negociante muito rico esqueceu, em meio a balbúrdia de um leilão, uma caixa de moedas de ouro. Dentro da caixa havia também uma jóia, uma serpente de ouro maciço, com a qual ele pretendia negociar.

Um homem pobre que passava por lá viu a caixa ali esquecida e, sem saber a quem pertencia, levou-a consigo. Chegando a sua casa, muito surpreso ficou ao ver toda aquela fortuna; e afligiu-se, pensando em quem a teria perdido.

Quando deu pela falta do seu tesouro, o negociante desesperou-se e mandou apregoar por toda a cidade que daria, a quem devolvesse a caixa, dez moedas como recompensa.

A notícia chegou aos ouvidos do pobre, que, sem hesitar, apressou-se a devolver o que achara. Procurou o dono da caixa, mas este, depois de contar as moedas e ver que nada faltava, arrependeu-se da promessa que fizera e resolveu ludibriar o homem pobre.

– Muito bem! – Exclamou. – Vejo que não há mais pessoas honestas neste mundo! Onde está a outra serpente?

– Outra serpente?!? – admirou-se o pobre. – Mas eu lhe juro que só havia uma.

O rico, porém, continuou afirmando que eram duas as serpentes e que, portanto, não lhe daria nada, visto que o roubo equivalia, ou mesmo ultrapassava, as dez moedas prometidas.

O homem pobre, ofendido e magoado, foi procurar o rei e pedir-lhe ajuda.

O rei mandou vir o negociante e ouviu dele a outra versão do acontecido. Os ministros e nobres da corte, foram unânimes em darem razão ao rico, pois o outro, tão mal vestido, não lhes pareceria digno de crédito; além disso, doía-lhes admitir que alguém, e não eles, recebesse a recompensa.

O rei, no entanto, ponderou que ambos podiam ter razão. E, não conseguindo decidir-se, mandou chamar um velho filósofo, conhecido por sua sabedoria e senso de justiça.

O filósofo ouviu os dois litigantes. O pobre pareceu-lhe sincero, mas não podia simplesmente decidir por ele, ofendendo o rico negociante. Então, assim se dirigiu ao rei:

– Creio, ó Majestade magnânima, que os dois estão dizendo a verdade. O que encontrou a caixa não pode estar mentindo, pois porque devolveria ele parte do tesouro se podia ficar com tudo? Esta me parece uma prova de sua honradez. O dono da caixa, por outro lado,  é rico e não tem motivos para mentir. Se ele diz que na sua caixa havia duas serpentes de ouro, é porque esta caixa que foi encontrada não é a dele. Sugiro, assim, Majestade, que se deem dez moedas  ao pobre e que se guarde a caixa até aparecer  o seu legítimo dono; quanto ao negociante, que continue a busca a seu tesouro!

Ouvindo aquilo, o homem rico soltou um lamento arrependido e confessou tudo.

O rei perdoou-lhe, porém ordenou que desse ao pobre, além das dez moedas, a valiosa serpente de ouro, como recompensa pelas injúrias que sofrera.

 

PAMPLONA, Rosane. Novas Histórias Antigas. 1. Ed. São Paulo: Editora Escarlate, 2018.

 

*Por: Jaênes Miranda Alves, pai, professor, nascido em Arizona (na época distrito de Morro do Chapéu), Bonito, Chapada Diamantina, Bahia. Atualmente, professor da Universidade Estadual de Santa Cruz e ultimamente, nos últimos sete anos, tenho me embrenhado e tomado gosto também pelos estudos da Educação nos vários níveis, principalmente, os infantil, fundamental e o médio. Muito decorrente da aproximação com a antroposofia.

**Meus agradecimentos, a Ana Flávia Basso pela oportunidade e pelo espaço para divulgar esse relato.

**Muito obrigado, para o professor Flávio Peixoto Lima pela atenciosa revisão linguística, não o responsabilizando pelos possíveis desvios, aqui ora cometido, no texto final.

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