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Hoje tem história de ensinamento. Daquelas que entram fundo. História para o adulto se nutrir, refletir, se centrar. E depois estar bem diante das crianças. Para ser digno de ser imitado e amado.
“Quando Ana Flávia me convidou para compartilhar uma história que me tocasse, não me veio nada imediatamente.
Dias depois, acordei com a imagem que vi em um livro que abri aleatoriamente em um templo budista que estava me retirando. Se o photoshop da memória já não fez a sua parte, lembro-me de um homem maltrapilho, com um facão pronto a dar um golpe, um olhar raivoso e, no pescoço, trazia um colar em que dedos humanos faziam as vezes das contas. Ali era Angulimala, o atroz estripador que, ao encontrar-se com o Buda, entendeu que o mal era fruto da ignorância e, deu-se conta da sua capacidade de cultivar um bom coração.
Acredito que a jornada deste personagem possa nos inspirar nestes dias de quarentena em que muitos sentimentos que estavam adormecidos vem à tona, pois mostra como a bondade, mais do que uma dádiva, é um estado cultivável mesmo naqueles que cometem os atos mais atrozes. Meditemos”.
Boa leitura!
Angulimala
(Conto Budista)
Vinte anos haviam decorrido desde a iluminação do Buda. A cada ano, ele passava a estação das chuvas no Parque de Jeta, em Savatthi. Houve um ano no qual um cruel ladrão e assassino surgiu no reino de Kosala. Ele atacava, roubava e matava qualquer um que cruzasse seu caminho, cortando um dedo de suas vítimas. Colocava esses dedos em um fio e os usava como um horripilante colar. Por isso, passou a ser conhecido como Angulimala – ou seja, “colar de dedos”. Onde quer que fosse, as pessoas fugiam em pânico. Cidades e vilarejos inteiros ficavam desertos.
Uma manhã, tendo mendigado sua comida, em Savatthi, o Buda partiu pela estrada em direção ao distrito que Angulimala estava aterrorizando. Enquanto caminhava, o Buda foi avisado por fazendeiros, pastores e viajantes para que não seguisse por aquele caminho. Bandos de dez, vinte, trinta e mesmo quarenta homens tentaram passar, esperando se proteger mutuamente, mas todos haviam caído nas mãos cruéis de Angulimala e foram mortos. O Buda ouviu os avisos, mas não lhes deu atenção e continuou caminhando em silêncio.
Angulimala havia encontrado um ponto com boa visão, a partir do qual podia vigiar a estrada para Savatthi. Mas, durante muitas horas, viu apenas um cão perdido e alguns animais selvagens. A estrada estava completamente deserta. Então, de longe, viu uma figura solitária caminhando em sua direção. Conforme a figura se aproximava, Angulimala percebeu que estava usando as vestes de um monge. Não podia acreditar que um monge fosse tão tolo a ponto de viajar sozinho em uma estrada onde todos sabiam que ele havia derrotado bandos de até quarenta viajantes. Ninguém o havia prevenido? Ou ele esperava que os deuses o protegessem? Angulimala não se importava. Fosse esse monge um bravo ou um tolo, iria matá-lo. Pegou espada, escudo, arco e flechas e desceu a colina na direção do tal monge.
Quando se encontrava mais próximo de Buda, Angulimala saiu da floresta e correu atrás dele pela estrada, a fim de golpeá-lo. Mas algo incrível aconteceu. Não importa o quão rápido ele corresse, não era capaz de se aproximar do monge, que continuava a caminhar calmamente, no mesmo passo. Angulimala ficou perplexo: “Em geral, posso alcançar um elefante ou um cavalo a galope, uma carroça ou mesmo um veado, mas esse monge continua andando em seu passo tranquilo e não consigo me aproximar!” Tentou correr ainda mais rápido, mas a distância entre ele e sua presa não diminuía.
Chegou um ponto em que ele decidiu parar e gritou para o Buda: “Pare, monge, pare!” O Buda respondeu: “Eu já parei, Angulimala. Agora é hora de você parar também!” E continuou andando.
Isso deixou Angulimala ainda mais perplexo. Ele percebeu, por sua aparência, que esse homem devia ser um seguidor do Buda, e seus discípulos supostamente nunca mentiam. Ainda assim esse monge disse que havia parado, enquanto continuava a andar, e estava dizendo a Angulimala que ele deveria parar, quando já não estava mais se movendo. Exigiu que o monge explicasse.
– Angulimala, eu cessei toda violência contra os seres vivos, mas você não tem feito. É por isso que já parei e você não.
Ao ouvir essas palavras, Angulimala ficou abalado. Sabia que ali, finalmente, naquele monge desprovido de medo, havia encontrado um mestre que podia respeitar. Chegara a hora de renunciar a seus hábitos perversos. Jogou fora suas armas e se atirou aos pés do Buda, pedindo-lhe que o aceitasse como discípulo. Com a cabeça raspada e usando os trajes da floresta, Angulimala retornou com o Buda para Savatthi.
Enquanto isso, na cidade, uma massa inquieta estava em frente aos portões do palácio, exigindo que o rei Pasenadi fizesse algo a respeito do ladrão e assassino que estava aterrorizando a região. Então o rei partiu, com mais de 500 homens, e, ao se aproximar do Parque de Jeta, desmontou do cavalo e prosseguiu a pé para ver o Buda, de quem há muito tempo era discípulo. Buda perguntou: “O que o perturba, bondoso rei? Seu reino foi invadido?” Pasenadi falou sobre o ladrão e assassino que estava destruindo o campo, e que temia não ser capaz de capturar.
“E se Angulimala deixasse sua vida de assassinatos e crimes, raspasse sua cabeça, usasse as vestes de um monge e se tornasse meu discípulo? O que você faria então?” O rei respondeu: “Eu teria por ele o respeito que se deve a um monge e cuidaria para que suas necessidades fossem atendidas. Mas, meu senhor, Angulimala está mergulhado demais em sua maldade para que essa mudança seja possível. Estendendo o braço na direção de um monge que estava sentado próximo a ele, Buda disse: “Bondoso rei, esse é Angulimala.”
Pasenadi ficou chocado e aterrorizado. O Buda o tranquilizou, dizendo que não havia nada a temer. O horror do rei aos poucos se foi e ele retomou sua tranquilidade. Foi até Angulimala, lhe prestou as homenagens formais e perguntou se havia alguma coisa de que precisasse.
Voltando-se para o Buda, expressou seu encantamento e sua gratidão, porque Buda havia conseguido, por meios pacíficos, dobrar Angulimala quando o poder e toda a força à sua disposição haviam falhado. O rei Pasenadi retornou a seu palácio bem mais feliz, e seu povo pôde voltar às suas casas se sentindo novamente seguro.
Angulimala agora havia se tornado um monge e ia todas as manhãs mendigar sua comida em Savatthi. Durante uma dessas idas, esteve em uma casa onde uma mulher estava passando por um trabalho de parto muito doloroso e difícil. Um grande sentimento de compaixão surgiu dentro dele, ficando profundamente tocado pelo sofrimento da mulher e de sua criança. Quando voltou, foi falar sobre isso com o Buda.
O Buda lhe disse: “Retorne à cidade e diga à mulher: ‘Irmã, desde que nasci, jamais tirei intencionalmente a vida de qualquer ser vivo. Espero que, através dessa verdade, você e seu filho possam encontrar paz.’” Angulimala respondeu: “Senhor, isso seria uma mentira, pois eu deliberadamente tirei a vida de muitos seres.”. “Então, Angulimala, vá até Savatthi e diga à mulher: ‘Desde que eu renasci na vida nobre, jamais tirei intencionalmente a vida de qualquer ser vivo. Espero que, através dessa verdade, você e seu filho possam encontrar a paz.’” Angulimala fez isso, e a mulher e o filho encontraram a paz.
O Buda observava atenciosamente o progresso de seu novo discípulo na vida espiritual e, quando achou que estava pronto, mandou Angulimala meditar sozinho na floresta. Praticando com grande determinação e energia, ele logo atingiu a plena Iluminação.
Um dia, enquanto pedia comida em Savatthi, Angulimala foi reconhecido por pessoas que o odiavam pelas atrocidades que havia feito no passado. Cheias de raiva, jogaram sobre ele paus, pedras, punhado de terra e potes quebrados, chamando-o de assassino. Ele retornou ao Buda com um corte profundo na cabeça, sangrando, com sua tigela quebrada e a roupa rasgada. O Buda viu quando ele se aproximava e foi até ele, dizendo: “Aguente firme, nobre amigo, aguente firme. Você está vivendo, aqui e agora, toda a dureza de um carma que, de outra forma, você teria que sofrer em existências infernais durante milhares de anos, em vidas futuras.”
Sozinho no retiro, vivenciando o contentamento da libertação, Angulimala rezou para que também seus inimigos pudessem encontrar os ensinamentos do Buda e conhecer a paz e a felicidade que ele próprio havia encontrado.
Fonte: Histórias e Ensinamentos da Vida do Buda, Saddhaloka, Sextante
Glauber Lacerda